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Figuras de fio

I

 

Dos jogos jogados, as figuras de fio têm a reputação de serem o entretenimento mais distribuído geograficamente pelo mundo: existem mais culturas familiares com as figuras de fio do que com qualquer outro jogo.

Os jogos de destreza manual com base em laços fechados de fio, foram registados pela etnografia por todo o mundo e em todas as zonas climáticas.

Mais de 2000 figuras foram recolhidas por todo o mundo, desde que, em 1888, a antropologista Franz Boas descreveu um par de figuras Inuit. 

O fabrico de fios e cordas está incluído no conjunto dos mais antigos feitos técnicos realizados pelo ser humano, auxiliando na construção, na tracção ou na obtenção de recursos (redes, armadilhas, fixação de material, etc...)

A antiguidade destas figuras perde-se, assim, no espaço milenar das diferentes culturas, servindo a mecânica do espaço-tempo lúdico, paralelamente com a auto-expressão individual; quer na capacidade de reprodução e tecida de figuras complexas quase instantaneamente, quer como na própria imersão cultural inerente que manifesta, quer como ferramenta social, ascética, religiosa ou médica.

 

O tecer das figuras envolve a colocação do laço fechado nas mãos e a sua manipulação pelos dedos, de modo a gerar figuras em duas ou três dimensões. A manipulação do fio também ocorre com a boca, pescoço e cabeça, pés e outras regiões do corpo. As manipulações são tendencialmente simétricas, embora existam excepções e variações na sua complexidade e dificuldade.

Em algumas regiões, o tecer das figuras é acompanhado de orações específicas ou cantos próprios tradicionais. E quase sempre, as figuras , são nomeadas por objectos do dia-a-dia, animais, plantas ou referências ao mundo espiritual. Algumas figuras representam motivos geométricos e algumas outras representam um movimento animado. Muitas vezes as figuras incluem uma história ou uma brincadeira que acompanha o seu fabrico. No entanto, a nomeação de uma mesma figura é inconsistente e mutável, diferindo bastante geograficamente.

Maioritariamente, o tecer das figuras é feito individualmente, havendo dinâmicas com dois ou mais praticantes e a possibilidade de auxílio de uma segunda pessoa para manipulações difíceis de serem realizadas pela mesma pessoa.

Através do jogo criativo a partir de laços de fio e de longos períodos temporais de tentativa-erro, o “Homo ludens” ancestral inventou tecidas ordenadas de manifesto interesse visual e cultural. A partir das modernas ferramentas de registo gráfico, o Homem actual, deverá estar numa boa posição para registar, instruir e progredir na exploração de figuras de fio. 

A herança dos jogos de fio pode ser transposta e transferida para outro paradigma cultural. Sendo fácil de aprender e de ensinar, a sua importância pedagógica e terapêutica reside na facilitação e desenvolvimento da destreza manual, na coordenação motora, no reconhecimento de padrões lineares e o entendimento da sua lógica inerente, no relaxamento muscular, na afecção dos meridianos da mão (oriundos da cultura oriental e afectadores das funções mentais e emocionais), na toma de momentos contemplativos e na intensificação do espaço-tempo lúdico.

II

 

O uso de cordas e fios, assim como a tecnologia do uso de fibras, resultou em algo basal, inerente e fundamental ao desenvolvimento humano e ao estabelecimento do seu tecido civilizacional e cultural. Actualmente, muita coisa depende deste tipo de materiais que une umas coisas às outras: a construção, os tecidos, os cabos eléctricos, as ferramentas, etc... Tal é a sua importância, que o conhecimento, o uso e o recurso de cordas e fios é algo central desde, pelo menos, o paleolítico. 

A arqueologia tem grandes dificuldades em encontrar vestígios físicos e directos de cordas ou fios, para além dos 20,000 anos, pela degradação dos materiais. No entanto, por métodos indirectos pode-se datar o seu uso e fabrico para épocas muitíssimo anteriores. Objectos como pendentes, agulhas, arpões, pesos de redes de pesca e impressões em barro deixadas pela presença de corda, indicam indirectamente a sua presença quotidiana e ancestral.

É possível que o recurso a nós elementares se tenha iniciado algures entre os 2,5 milhões de anos e os 250,000 anos. No entanto, é espectável que o uso de tal recurso se tenha dado antes do fabrico de fios ou cordas.

Assim como todas as comunidades humanas e símeas da actualidade partilham o uso de nós elementares, é possível que tal se tenha iniciado com o bipedismo do Australopithecus e, portanto, antes do domínio do fogo ou das ferramentas em pedra. A diferença principal entre o uso de nós elementares pelo símios e pelos humanos é que os símios usam-nos individualmente e solitariamente; e os humanos usam-nos colectivamente e por cooperação.

A peça mais antiga de fragmentos de corda, de algum modo conservada até hoje, datam de à 19,000 anos. Sendo o uso de fibras vegetais torcidas sido continuado até aos dias de hoje, desde o Mesolítico.

III

 

Do ponto de vista antropológico, as figuras de fio possuem, no seu conjunto, algumas características de interesse: primeiro, cada tecida tende a estabilizar numa determinada cultura e, na ausência de migrações tende a difundir-se lentamente para regiões adjacentes; segundo, a imensa diversidade possível de tecidas distintas, diminui drasticamente a possibilidade de duas culturas constituírem o mesmo repertório; terceiro, o facto da tradição das figuras em fio ter sido transmitida em presença e em pessoa, sendo testemunha de uma cultura viva e perpetuada pela assertividade do mito.

Estas características conduziram a antropologia, dos finais do séc. XVIIII e inícios do séc. XX, a inferir e a propor uma teoria difusionista, na qual a distribuição dos padrões das figuras de fio, denotava contacto cultural prévio, e assim poderia contribuir para o estudo das migrações pre-históricas, da colonização primordial humana e da difusão cultural histórica por uma dada região.

No entanto, nem todos os antropologistas aceitaram esta hipótese, declarando que idênticas figuras, recolhidas do repertório de distintas regiões, poderiam ser resultantes de invenção independente e de uma relação intuitiva e natural com o material. 

A invenção de determinadas figuras, pode acontecer em momentos isolados da história e da geografia de um modo independente e como resultado de vivências culturais distintas e, até numa mesma tradição ou geografia estão estabilizados e registados diferentes métodos de fabrico. 

 Esta tese foi corroborada por uma segunda geração de antropologistas, estudiosos de figuras de fio, em meados dos anos 40 e 50 do sec. XX, e até ver, a associação das figuras de fio e da sua construção à mobilidade geográfica e à origem e à evolução cultural das nações, fica portanto, dependente da complementaridade de outros dados arqueológicos, etnográficos, linguísticos, etc..., que também demonstrem e consolidem tais ligações.

 

Nos anos 60 e 70, pela revalorização das heranças culturais dos povos, o interesse pelas figuras de fio ganhou um novo ânimo. Deixaram, então, de ser meras curiosidades antropológicas para se constituírem como relíquias culturais, com o entorno charmoso, enigmático e apaixonado das culturas antigas. Assim, académicos de outras disciplinas como musicólogos, linguistas, historiadores, matemáticos, psicólogos e finalmente educadores, aproximaram-se do tema. Estudaram os cantos que as acompanhavam musicalmente e linguisticamente; a sua distribuição e mobilidade geográfica, assim como o seu panorama após a europeização cultural e política de alguns territórios; a matemática inerente às figuras e prévia à introdução da cultura europeia; a sua repercussão no estado mental e emocional do praticante e a sua aplicação ao ensino e à saúde.

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